Como a cultura hacker pode servir de inspiração para um novo, e necessário modelo de ensino
O mundo em crise. Crise econômica, moral, religiosa, crise de modelo. O poderio econômico mandando bala, determinando tudo. As grandes corporações assumem, de fato, o controle de quase tudo. Foi-se o Estado, foram-se os governos. No Brasil, quatro grandes operadoras de telecomunicações paralisaram mais de 400 deputados do final de outubro de 2013 até abril de 2014, devido ao Marco Civil da Internet. Quer mais? Pois tem muito mais, basta você pensar um pouco sobre as coisas que estão em volta, no cotidiano de Belo Horizonte, da Bahia ou aqui da Alemanha, de onde escrevo.
Insatisfeita com tudo isso, muita gente – jovens, mas não só eles –, foi às ruas das cidades brasileiras em junho de 2013. E eles continuam atentos, pois problemas não nos faltam.
Os desafios contemporâneos estão a exigir de cada um de nós uma atitude que vá além do reclamar ou se indignar. Exigem ativismo. Sim, esta é a palavra que uso com mais frequência nos dias de hoje, principalmente trabalhando com educação. Já fazia isto desde muito, desde o início de minha carreira como professor. Só não havia ainda essa palavra!
Não é mais possível pensar em um sistema educacional que continue centrado na lógica de distribuição de informações. No passado, elas eram escassas e fazia sentido procurarmos a escola e os mestres para buscá-las. Os professores eram verdadeiros "poços de saber". Hoje, temos abundância de informações e isso, diferentemente do que pensam alguns, é mais do que bom. É excelente, mas não basta. Precisamos, justamente por conta disso, ter uma enorme capacidade de leitura destas informações que abundam. E a leitura, aqui, ganha uma dimensão muito maior daquela que estamos acostumados a associar às letras e, no máximo, aos números. Agora, muito mais do que antes, isso é insuficiente. É importante, claro, mas necessário se faz que tenhamos a capacidade de ler num sentido muito mais amplo. Uma leitura do mundo, que inclua a leitura dos códigos de programação dos computadores; a leitura das imagens que circulam de forma frenética pelas redes e pelas ruas; a leitura do corpo, cada vez mais preso a Gadgets eletrônicos; e a leitura do ambiente cada vez mais destruído, aqui, ali e acolá.
Isso demanda uma outra postura frente à vida e é aí que entram os hackers. Quando se pensa em hacker, é comum que se pense num criminoso que age entre os zeros e uns da internet, roubando senhas e quantias em dinheiro. Entretanto, o estereótipo do vilão online não representa adequadamente os hackers. Para os vilões, foi inclusive criada a palavra "cracker", para identificar esses criminosos cibernéticos, que não têm nada a ver com o hacker a que aqui nos referimos. Portanto, a única forma de combater a marginalização do termo é a população receber informações sobre o assunto e ser educada para não vê-los como “terroristas virtuais”, mas sim como um grupo de pessoas em busca da construção coletiva do conhecimento.
Dois livros são importantes para analisarmos a questão. O primeiro foi escrito pelo jornalista Steven Levy, em 1984, e publicado no Brasil em 2012 com o título "Os heróis da revolução - Como Steve Jobs, Steve Wozniak, Bill Gates, Mark Zuckerberg e outros mudaram para sempre as nossas vidas" (Hackers: Heroes of the Computer Revolution, no original). O outro, referência importante para quem está atento ao tema, é o livro do filósofo finlandês Pekka Himanen: "A Ética dos hackers e o espírito da era da informação" (Te Hacker Ethic and the Spirit of the Information Age, de 2001). Dos dois livros podemos elencar alguns princípios que regem a cultura hacker e que podem ser úteis para as nossas refegões sobre educação.
Para o hacker, o acesso aos computadores e a qualquer coisa que possa ensinar algo sobre o funcionamento do mundo deve ser irrestrito e total. Além disso, o hacker faz o que gosta, do jeito que gosta e quando gosta: cria coisas úteis para a sociedade e espera reconhecimento em troca. Por isso, os hackers devem ser julgados por suas ações, não por critérios artificiais, como diplomas, idade, raça ou posição. De outro lado, suas criações devem estar sempre disponíveis para serem aperfeiçoadas, sendo importante não confiar nos argumentos de autoridade e, ao mesmo tempo, sempre promover a descentralização das produções e decisões.
Um hacker tem participação ativa no seu grupo social, por isso gosto de usar a expressão "ativismo" quando a eles estou me referindo. Eles produzem conteúdos e logo os colocam na roda – e na rede! – para que possam ser testados e aperfeiçoados por todos. Eles reconhecem o esforço do outro e dão créditos aos desenvolvedores anteriores. Para o movimento hacker, é importante sempre inovar, buscando-se constantemente melhorar o que foi produzido. Isso porque, para eles e para nós, os computadores podem mudar sua/nossa vida para melhor. Mas é necessário dedicar-se com amor ao que se faz e acreditar que é possível criar arte e beleza nas máquinas.
Estes são alguns dos elementos do que poderíamos chamar de princípios gerais da atuação dos hackers. O que quero propor aqui é associá-los à educação, para que possamos usá-los como inspiração para repensar o sistema educacional como um todo.
"Não confiar nos argumentos de autoridade e, ao mesmo tempo, sempre promover a descentralização das produções e decisões."
Princípios para uma Educação Hacker:
- O acesso a todo e qualquer meio de ensino deve ser total aos que querem aprender.
- Desconfiar da autoridade significa pensar que professores, livros e qualquer fonte de informação devem ser lidos com crítica, sempre buscando-se comparar e encontrar outras possíveis fontes, para ver os mesmos fatos a partir de outros ângulos.
- Os processos de aprendizagem precisam estar centrados, da mesma maneira que deve ser defendido o livre acesso a todo tipo de informação, numa lógica baseada na criação e produção de culturas e conhecimentos e não no mero consumo de informação.
- É necessário compreender a diversidade de saberes, culturas e conhecimentos trazidos para a escola por alunos, professores, mídia e materiais didáticos. Isso, se trabalhado na sua extensão, favorece a formação preparadas para lidar com a complexidade e a pluralidade de opiniões dos seus alunos, elas acabam destruindo, ao longo de sua escolarização, a criatividade, fazendo (e achando que conseguem!) com que todos os jovens pensem da mesma forma. Necessário se faz superar essa visão.
- A cópia é parte do processo de aprendizagem e deve ser defendida, assim como o livre acesso a todo tipo de informação. O que vemos é que, apesar de nas séries iniciais o compartilhamento dos bens, como brinquedos e materiais escolares, ser estimulado pelos professores, conforme os anos vão avançando o aluno aprende que a troca de informações é limitada e que, no ambiente acadêmico, a cópia não é bem vista.
- O erro não deve ser criminalizado e nem mesmo evitado, pois ele faz parte dos processos de aprendizagem.
- A arquitetura das escolas deve ser tal que possibilite que as atividades se dêem de forma muito mais livre e coletiva, não deixando, obviamente, de haver espaço para uma aula, um quadro negro, uma biblioteca com livros e coisas com as quais já estamos acostumados no ambiente escolar. Mas essa não pode ser a dominância espacial do projeto.
"Seria necessário uma reestruturação da rede de ensino como um todo."
Para que os princípios da cultura hacker façam parte da educação escolar, seria necessário uma
reestruturação da rede de ensino como um todo, o que não impede que já possamos ir realizando algumas modifcações e introduzindo práticas que apontariam na direção da escola desejada. Por exemplo, aproveitando todos os equipamentos que já chegam nas instituições,
fornecidos pelo MEC e Secretarias de Educação, como computadores e câmeras fotográfcas, além dos celulares dos próprios
alunos, poderiam ser montados laboratórios hacking e promovidos hackdays, envolvendo inclusive ex-alunos e a comunidade.
O modo como os hackers trabalham tem muito a nos ensinar para repensar o sistema educacional, e a própria internet é um exemplo. A "rede das redes" foi assim denominada por uma única e fundamental razão, vital para o nosso raciocínio: o sistema desenvolvido partiu do princípio de que não se precisava modificar o que já existia, e sim criar um protocolo (ou muitos) que conectasse as diferenças. Cada ponto da rede usa, portanto, o sistema operacional de sua preferência e a comunicação acontece assim mesmo, sem necessidade de se transformar as diferentes redes em uma única. Outro princípio fundamental é: não importa o que cada computador receba enquanto um nó da rede, o que é recebido deve ser passado adiante,
sem que se olhe o conteúdo (ou seja: todos os bits são neutros) e sem que se cobre nada por isso (na verdade, o custo é diluído por todos). Esta é a razão pela qual você e eu podemos conversar sem custos, entre Alemanha e BH, ou em qualquer outro lugar do planeta.
Voltemos aos hackers e à educação.
Como eles estavam na base do próprio desenvolvimento da internet, esses princípios estavam presentes desde aquele momento. O exemplo maior disso é o movimento do software livre, que tem como base justamente o compartilhamento da informação, sem se preocupar (muito) com o erro e disponibilizando as descobertas de cada um de maneira a estimular a comunidade a buscar o aperfeiçoamento do sistema. Desta forma, todos participam do desenvolvimento e, quanto mais usamos os software, mais eles, potencialmente, se aperfeiçoam. Os mais antigos devem se lembrar de como era difícil usar um computador com o Linux. Pois enfm, usamos, e usamos muito, vários software, e a comunidade os foi aprimorando; à medida que os problemas apareciam, íamos informando aos desenvolvedores e eles, assim, podiam realizar as melhorias. Claro, muita gente com capital e empresas investiram nisso, como por exemplo no Ubuntu. O empresário e milionário sul-africano Mark Shuttleworth fnanciou boa parte do desenvolvimento do sistema a partir da empresa Canonical.
Em paralelo a isso, políticas públicas foram sendo estabelecidas e, a partir de 2003, o Brasil tem esboçado papel importante nesse campo. A cultura hacker começou a ser parte uma política de governo, a caminho de uma política de Estado. Como exemplo temos os Pontos de Cultura, as lutas pela reforma do direito autoral, uma política de banda larga para o país, o Marco Civil da Internet, entre outras. Tudo isso foi fruto, talvez tenha aqui até um exagero, de uma forte articulação em rede – à la movimento hacker – e cada ação contra esse avanço correspondia a uma violenta reação em defesa dos princípios hacker, que, em última instância, são os princípios da liberdade de expressão, do direito ao anonimato, da transparência de dados, entre tantos outros. Neste último, em particular, vale sempre relembrar a máxima hacker: a privacidade é para os indivíduos e a transparência é para os governos e políticos.
Portanto, se pensamos em profundas transformações para o planeta e consideramos que a educação tem nelas um importante papel, precisamos pensá-la a partir de uma visão bem ampla, uma visão com um jeito hacker de ser.
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